sábado, 11 de junho de 2016

QUEM SÃO NOSSOS PAIS?


Levados apenas pelo instinto, sem pensar um segundo que seja, nas consequências, João e Maria fazem amor. Na beira do cais ela recebe em cruzeiros ou dólar por aqueles momentos íntimos entre as quatro paredes rachadas e mal caiadas de um quarto de aluguel. É filha de família do interior a quem só visita de ano em ano. Seus pais não sabem que a sua querida Maria é uma mulher da vida. Para eles ela trabalha num desses romncys, jumbos ou samasas da cidade grande. Maria não toma pílula e sabe que pode ficar grávida. Ela sabe também que um envelope de anticoncepcional custa pouquinho mais que 12 cruzeiros, mas não toma. Suas “colegas” usam de outros recursos para evitar menino, ela, não. Já engravidou diversas vezes, fez vários abortos. Maria precisa “trabalhar” – é uma das muitas “secretárias da beira do cais”. Ela continua fazendo amor: várias vezes por dia, dezenas de vezes por mês. Novamente descobre que está grávida e desta vez não vai ser possível o aborto – quem fazia “perdeu” uma paciente e teve de viajar às pressas para não ser preso e, além do mais, a anemia é profunda e o médico desaconselhou tentar a intervenção para extrair a criança cujo pai ela não sabe e nem desconfia de quem seja. Tanto pode ser o taifeiro, o guarda, o vigia ou o marinheiro de fala engraçada que ela não entendia nada, mas sabia o que ele queria e que pagou em dólar. Sabia apenas que era de um navio holandês que veio carregado de máquinas. Até o quarto mês ela ainda é procurada por joões e raimundos, freds e williams, depois a barriga começa a incomodar, ela vai perdendo a freguesia e começa a amaldiçoar o filho que carrega nas entranhas. Um dia, ela começa a sentir as dores e vai à Maternidade Escola, onde é atendida como indigente... e dá à luz a uma linda menina de pele alva, cabelos louros e olhos azuis. Agora ela sabe quem é o pai. Mas isso não importa, o que importa mesmo é o que fazer com a criança. Não quer dar a um qualquer e no prostíbulo não vai poder criar – o choro vai incomodar aos clientes e vai tornar-se prostituta cedo. 


Ouve falar de um tal Padre Caetano que tem uma casa que recebe menores lá pras bandas da Barra do Ceará. Apanha um táxi e vai deixar, com a Alzira – a “mãezinha” aquela boneca que nunca vai saber quem realmente eram seus pais.

Fonte (texto e fotos): QUEM são nossos pais? Jornal Tribuna do Ceará, suplemento T.C Dimensão, Fortaleza, CE, p. 08, 1977 (?)






Padre Caetano teve que enfrentar com sabedoria a contradição de seus pais que, de início, não apoiaram sua decisão de deixar tudo e seguir a vida religiosa. Um dos argumentos utilizados era a questão dos filhos... Parecia confortável a vida celibatária aos olhos de sua família, em certo sentido, e também pelo fato de desde muito cedo ele amar a presença dos pequenos ao seu redor. Um jovem de bela aparência, de educação exemplar, corajoso que era... Mas até que seus pais o ajudaram a discernir sua vocação!

Ao chegar no Pirambu ao final da década de 60, Padre Caetano faz uma séria constatação. Era surpreendente o número de crianças afetadas por famílias que, por falta de formação ou melhores condições de vida, não levavam a sério a vocação matrimonial, pais que viviam “juntos” (unidos sem o sacramento do matrimônio) ou que, pela situação social de miséria, acabavam abandonando seus filhos. Para o jovem padre europeu, o número e a situação eram inadmissíveis e, para ele, isso constituía um fato curioso. Então, para presentear as crianças da comunidade, quis contar com ajuda da Legião Brasileira, Cáritas, Campanha Nacional de Alimentação Escolar e a sociedade fortalezense; funda a Comunidade Infantil Cristo Redentor em 12 de outubro de 1969, com assessoria de Alzira Lira, então moça solteira da comunidade que quis tomar para si o cuidado daqueles que ali chegassem. O Cristo Redentor torna-se, assim, modelo para toda cidade. Algumas crianças eram deixadas na porta de sua casa, chegavam inclusive doentes, tristes, até espancadas, com lesões, outras sem nome, sobrenome ou data de nascimento, o que fazia às vezes o jovem padre se deslocar de um Estado a outro, num trabalho às vezes sem resultados satisfatórios, em busca dessas informações. Segundo Padre Caetano, nesses casos, as crianças escolhiam o dia que achassem mais bonito e um nome qualquer, e eles passavam a aniversariar naquele dia. Isto era muito importante para que eles tivessem um sentido maior de continuidade ali e não se achassem diferentes das outras crianças. 

Apesar de naquela época ainda não haver levantamento estatístico oficial de crianças abandonadas no bairro, o jornal Unitário (15/11/1969) apontava seis mil. Padre Caetano adotou mais de 100 crianças, dessas, mais de 50 levam seu sobrenome. Algumas ele conseguiu a guarda da justiça, outras se agregavam aos cuidados da Comunidade Infantil; ninguém era despedido sem uma atenção especial dele, há muitas pessoas que a ele se dirigiam como pai sem serem adotadas, apenas pelo sentimento filial e respeito àquele padre belga alto, de sorriso bondoso e com um sotaque engraçado.


O nome que Padre Caetano escolheu para a instituição realmente fazia jus, conhecida também como Casa do Menor, oficialmente a intenção era de ser um lar, uma verdadeira comunidade. Embora, inevitavelmente, como em todas as relações pessoais, houvesse conflitos, de modo geral a relação entre as crianças era franca e carinhosa, os mais velhos ajudavam os mais novos e alguns até trabalhavam para ajudar nas despesas da casa (que eram muitas!). 


Alzira insistia em dizer que ali não era um depósito de órfãos, mas uma grande família. Quando acontecia de alguma criança ser adotada sempre deixava saudade nas que ficavam. Eles faziam questão de celebrar os aniversários, batizados, primeiras comunhões e, nesses dias, era grande festa; a casa era arrumada com muito carinho e capricho. Quanto às economias, mesmo sendo “apertadas”, procurava-se ao máximo não deixar o homenageado sem o bolo ou presente. Algumas dessas crianças estudavam numa das melhores escolas de Fortaleza (Presidente Médici), faziam cursos profissionalizantes, ao ponto de conseguirem estabelecer algo mais estável para suas vidas.

À medida que cada um ia crescendo, iam também procurando construir seu ninho e refazer suas histórias, mas com extremo sentimento de gratidão. Inúmeras são as cartas, fotos, expressões de carinho filial para com esse Gigante do Pirambu. Hoje a instituição em si foi extinta, mas o Centro Comunitário Cristo Redentor continua atuante na promoção humana, mantendo também creches e projetos que visam promover e resgatar a dignidade da pessoa humana.

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Ir. Narcélio Ferreira de Lima, INJ
Religioso, membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, graduado em filosofia pela Faculdade Católica de Fortaleza - FCF e graduando em teologia pela Faculdade Diocesana de Mossoró - FDM. 

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