segunda-feira, 4 de julho de 2011

Quando se tem que enfrentar um “a-DEUS”.



Em 1996, 7 monges Cisticerciences foram seqüestrados e mortos na aldeia argelina de Tibhrine. O fato se transformou no filme “Homens e deuses”, que estreiou em São Paulo e Rio de Janeiro, em abril de 2011. Aguardamos que ele chegue também a outras cidades  A carta, abaixo, foi escrita pelo prior como uma despedida, ou, como chama, de um “a-DEUS”, aos amigos e aos que o matariam. O filme é uma excelente oportunidade de refletirmos sobre a fé cristã, as religiões, e o mundo da violência fundamentalista de hoje.

O testemunho espiritual de Christian de Chergé, prior do Mosteiro Trapista de Nossa Senhora de Atlas, Argélia (Tibhrine)

 

Quando se tem que enfrentar um “a-DEUS”.
Se acontecer um dia - e poderia ser hoje - em que eu me torne uma vítima do terrorismo que agora parece pronto a engolir a todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que minha comunidade, minha Igreja e minha família se lembrassem de que minha vida foi dada a Deus e a este país.


Peço-lhes que aceitem que o Único Mestre de toda minha vida não desconheceu esta partida brutal. Peço-lhes que rezem por mim: pois como poderia ser eu digno de tal oferta? Peço-lhes que consigam ligar esta morte às muitas outras mortes que são da mesma forma violentas, mas esquecidas pela indiferença e o anonimato. Minha vida não tem mais valor do que qualquer outra. Nem também menos valor.
Em qualquer caso, ela não tem a inocência da infância. Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no mal que parece, infelizmente, prevalecer no mundo, mesmo aquele mal que me mataria cegamente. Gostaria que, quando vier o tempo, ter o momento de lucidez que me permitirá pedir o perdão de Deus e de todos os seres humanos meus amigos, e ao mesmo tempo perdoar com todo meu coração aquele que me matará.


Não desejo tal morte. Perece-me importante declarar isto. Não vejo, de fato, como poderia me alegrar se este povo que amo for acusado indiscriminadamente de meu assassinato. Responsabilizar um argelino, quem quer que seja, seria um preço muito alto para pagar para aquilo que talvez seja chamado a graça do martírio, especialmente se ele diz que agiu em fidelidade com o que acredita que seja o Islã. 


Estou consciente da pecha que será jogada a todos os argelinos indiscriminadamente. Também tenho consciência da caricatura do Islã que um certo islamismo encoraja. É fácil salvar a própria consciência identificando-se nesta via religiosa com as ideologias fundamentalistas de seus extremistas.
Para mim, a Argélia e o Islã são algo diferente: são um corpo e uma lama. Disse isto bastante frequentemente, creio eu, sabendo que recebi aqui mesmo o verdadeiro caminho do Evangelho, aprendido no joelho de minha mãe, minha primeira Igreja de fato, na própria Argélia, e já inspirada com respeito por crentes muçulmanos. 


Minha morte, claramente, parecerá justificar aqueles que me julgam apressadamente ingênuo ou idealista: ‘Deixe-o dizer-nos agora o que ele pensa sobre isto!’ Mas estas pessoas precisam compreender que minha mais ávida curiosidade será satisfeita. Por isto será o que serei capaz de fazer, se Deus assim o quiser. Imerso meu olhar naquele do Pai, contemplarei com Ele seus filhos do Islã da mesma forma como Ele os vê, todos radiantes com a glória do Cristo, o fruto de sua Paixão, e cheio com o dom do Espírito, cuja alegria secreta será sempre de estabelecer a comunhão e de remodelar a semelhança divina, brincando com as nossas diferenças.


Por esta vida perdida, totalmente minha e totalmente deles, agradeço a Deus que parece tê-la desejado inteiramente para esta alegria em tudo e a despeito de tudo. Neste agradecimento, que resume minha vida inteira a partir de agora, certamente incluo vocês, amigos de ontem e de hoje, e vocês, meus amigos deste lugar, junto com minha mãe e meu pai, minhas irmãs e irmãos e suas famílias cem vezes me foi dado a mais como prometido!


E também você, o amigo do meu momento final, que não terá consciência do que estiver fazendo. Sim, quero agradecer a você e este a-DEUS é para você em quem eu verei a face de Deus. E possamos nós dois encontrarmo-nos, os felizes bons ladrões do Paraíso, se isto agradar a Deus, o Pai de ambos.

Amém! In sha’ Allah!

Christian de Chergé,

Aberto no Domingo de Pentecostes de 1996.

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